terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O VASCO NA ILHA DO ENGENHO - 1903


Candinho e o primeiro registro fotográfico dos Camisas Negras




O retorno à ilha do Engenho

   O ano de 1902 foi particularmente difícil para o Vasco. Não que o club deixasse de crescer, aumentar sua flotilha, arregimentar novos e distintos sócios ou ainda de buscar a merecida glória, mas o fato marcante daquele ano foi o trágico naufrágio da baleeira Vascaína, ocorrido no mês de abril nas águas da baía de Guanabara, cujo mar tragou a vida de quatro de seus doze remadores - os primeiros mártires vascaínos! As festividades daquele ano ficaram restritas às instalações internas. Somente no ano seguinte foi retomado aquele que se tornou um dos maiores eventos sociais do club, o pic-nic na Ilha do Engenho.


Dois pic-nics em abril de 1903

   Segundo o semanário O Malho, publicado em fins de março de 1903, a realização do convescote (piquenique)* estava designado inicialmente para a Ilha do Fundão, que à época era apenas uma das oito pequenas ilhas que futuramente seriam aterradas e interligadas para a construção do atual campus universitário da UFRJ.  Entretanto, o evento social acabou por ser realizado a 5 de abril de 1903 na "pitoresca" ilha do Engenho.

   O pic-nic se deu conforme o esperado e mais, foi a oportunidade de se comemorar as últimas vitórias náuticas sob o comando daquele que viria a se tornar em 1904, o primeiro presidente de honra do clube, Alberto de Carvalho e Silva. Outro haveria de ser realizado no dia 26 de abril, com mais uma malta de sócios do Vasco!

Alberto de Carvalho e Silva
Presidente de 1902 a 1904 e de 1906 a 1907,
um dos notáveis administradores da época da consolidação.

   Esse segundo pic-nic foi devidamente registrado pela imprensa da época, e fez balizar no tempo dois fatos importantíssimos que viriam marcar de forma permanente a memória vascaína: o surgimento daquele que apontou o Vasco como um club verdadeiramente interracial, o futuro presidente Candido José de Araujo; e além disso, o primeiro registro fotográfico dos históricos Camisas Negras, antes mesmo da adoção do futebol.

   A imprensa de então noticiou as festividades e o resultado das competições que se desenvolveram na forma de gincana entre sócios. Como no anterior, o convescote também foi realizado num domingo. O Jornal do Brasil manifestou a simpatia e o sucesso do congraçamento entre vascaínos:

   "Referimo-nos na edição da tarde de hontem ao esplendido passeio maritimo, realizado domingo ultimo, por um alegre grupo de amadores do acreditado Club de Regatas Vasco da Gama.
 
   Noticiando essa intima e encantadora festa procuramos fazer sentidas a doce camaradagem e a esmerada organisação que foram as notas caracteristicas daquelle passeio á ilha do Engenho." (JB, 3 de maio de 1903)".


Candinho e o discurso profético


Candido José de Araujo
Presidente de 1904, 1905 e 1906.
O primeiro vascaíno de cor a presidir o C. R. Vasco da Gama

   Encarregado do pic-nic de 26 de abril de 1903, Candido José de Oliveira despontou como verdeiro e empolgado orador, indicando o obrigatório caminho da união entre os sócios que soergueram às alturas o nome do Club de Regatas Vasco da Gama:

   "... Acabados os exercícios fizeram presentes varias escursões pela ilha, seguindo-se profuso jantar; ao terminar usou da palavra o socio Candido de Araujo (Candinho) o qual concitou os Vascaínos a congregarem-se a fim de collocarem o Vasco da Gama no logar que lhe está destinado..." (Correio da Manhã - 29 de abril de 1903).

   Mulato e escriturário da Central do Brasil, haveria Candinho de se eleger presidente em agosto do ano seguinte, conduzindo e preparando o club para o seu primeiro campeonato em 1905, quebrando em vários sentidos o paradigma elitista dos clubes de regatas da então Federação Brazileira das Sociedades de Remo, o que tornou o Vasco da Gama um verdadeiro club interracial no ano de 1904!

Candinho junto à malta no pic-nic de 26 de abril de 1903


O primeiro registro foto-jornalístico dos Camisas Negras

   Ao contrário do que muitos imaginam, os Camisa Negras não surgiram no Vasco com a criação da seção de futebol em dezembro de 1915.

   Mario Filho, em sua romantização a respeito da fundação do Vasco, publicada na sua coluna "Primeira Fila" do semanário "O Globo Sportivo", esclarece que uma das opções para escolha do uniforme do club seria a camisa inteiramente negra. E de fato esse foi o uniforme escolhido, exceto por um evidente conflito: não era concebível o uso da Cruz de Cristo sobre campo negro, mas somente sobre campo branco.


A bandeira da Ordem Militar de Cristo com sua cruz sobre campo branco
(Preparativos para a festa de Ano Novo na Ilha da Madeira - 1936
 Funchal - Praça João Gonçalves Zarko - A cruz verde representa a Ordem de Avis
Acervo: Universidade de Dresden - Foto: Franz Grasser)


   A solução: uma faixa a tiracolo branca, abotoada no ombro das camisas negras para uso nas regatas oficiais, solenidades de gala e fotografias do quadro de honra!

  Portanto, o C. R. Vasco da Gama já nasceu com seu uniforme oficial negro com a faixa a tiracolo branca, encimada pela Cruz de Cristo encarnada no centro do peito, juntamente com a sua variação interna, a camisa negra.

  Fato é que, excetuado o privilégio do uso obrigatório da faixa a tiracolo, o Vasco da Gama sempre foi Camisa Negra nos torneios internos e demais competições esportivas oficiais anteriores ao futebol, apesar das versões em contrário, inclusive a abraçada oficialmente pelo club, sendo que o primeiro registro fotográfico dos Camisas Negras se deu exatamente no pic-nic na ilha do Engenho, a 26 de abril de 1903.



---
Vascainidades:

1) CORREIO DA MANHÃ - segunda-feira, 10 de abril de 1903

CLUB VASCO DA GAMA

   Domingo passado, na pitoresca ilha do Engenho, realizou-se o convescote promovido sob os auspicios de um grupo de associados.
   Á 1 hora da tarde, nas lanchas Ordem e Marechal Bittencourt partiram os numerosos convidados para a bella festa.
   Apezar da forte ressaca, foi alegre a travessia, portando-se galhardamente os dois barcos, que ostentavam nos mastros a flamula do C. V. da Gama.
   Ás 2 horas da tarde, chegados á ilha do Engenho, foi o desembarque effetuado por meio de botes, visto não permitir o pouco fundo, que atracassem as duas embarcações.
   Depois de percorrerem a aprazivel ilha, subdivididos em varios grupos, reuniram-se todos para assistir aos exercicios do programma.
   Do primeiro pareo, corridas de saccos, foi vencedor, apos varios accidentes interessantes o sr. Abel Costa; do 2.º, agilidade, sahiu vencedora a senhorita Marieta Deconto; o sr. Famega venceu o 3.º pareo, corridas de saccos.
   O 4.º pareo, o mais original e interessante de todos, verdadeira prova de agilidade, agudeza de vista e paciencia teve vencedora mme. Freire, sahindo o sr. Guilherme de Azeredo vencedor do 5.ª pareo, agilidade.
   A senhorita Deconto sahiu ainda vencedora na prova Conquista do Polo, terminando o programma com o concurso de tiro ao alvo, vencido pelo sr. Abel Costa.
   Foi em seguida servida lauta mesa de finas iguarias, reinando durante a collação o tradicional enthusiasmo dos vascainos a cujo influxo não podiam escapar os seus convidados.
   Aos vencedores foram distribuidos premios.
   Ás 7 horas da noite separaram-se os socios e convidados do Vasco da Gama, saudosos das horas deliciosas que tão depressa passaram na ilha do Engenho.

2) CORREIO DA MANHÃ - quarta-feira, 29 de abril de 1903

CLUB VASCO DA GAMA

   Não se cansa esta sympathyca sociedade de realizar exercicios para mostrar os progressos feitos pelos seus membros, em varios generos de sport.
   Ainda domingo ultimo grande numero de amadores com suas familias e alguns convidados dirigiram-se, a bordo da lancha Santa Cruz, para a ilha do Engenho, onde no meio da animação geral, realizaram-se os seguintes pareos:
  1.º pareo - Agilidade, para rapazes, 1.ª turma: vencedores srs. Albano Fonseca, em primeiro logar, Herculano Coelho, em segundo;
   2.ª pareo - Agulhas, vencedores: madame Julio Costa, senhorita Gracinda Oliveira e sr. Alberto Duarte.
   3.º pareo - Agilidade, para meninos: em primeiro Arthur Bulhões, segundo Benjamin Correa.
   4.º pareo - Pedestres, sahiu vencedor: primeiro logar, Antonio Baptista e Albano Fonseca, segundo.
   5.º pareo - Conquista do polo, senhorita Maria Laforge.
   6.º pareo - Saccos: primeiro, Albano Fonseca, segundo Plinio Ribeiro.
   7.º pareo - Procura do elephante, sahiu vencedor João de Figueiredo.
   Acabados os exercicios fizeram os presentes varias excurções pela ilha, seguindo-se profuso jantar. ao terminar usou da palavra o socio Candido Araujo (Candinho) o qual concitou os Vascainos a congregarem-se a fim de collocar o Vasco da Gama no logar que lhe está destinado.
   Era noite fechada, quando a Santa Cruz, garbosamente illuminada a giorno, atracou no caes Pharoux, deixando em terra os socios da melhor sociedade nautica e os seus convidados, entre os quaes se contavam o srs. A. Gomes da Costa e familia, Marques de Oliveira e familia, viuva Laforge e filhos, e outros cujos nomes não nos ocorre.

3) Fotos de Alberto de Carvalho e Silva e Candido José de Araujo obtidas da obra de José da Silva Rocha - CLUB DE REGATAS VASCO DA GAMA - HISTÓRICO: 1898-1923 - Gráfica Olímpica Editora Rio - 1975 - p.33

4) O termo "Camisas Negras" surgiu em meados dos anos 30, quando os cronistas esportivos ligados ao futebol passaram a designar dessa forma o scratch vascaíno, o que perdurou até meados de 1943, com a adoção definitiva dos dois atuais uniformes com as cores invertidas e faixa a tiracolo.

*texto originalmente publicado em 02/12/2013 - 03h42m no semprevasco.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário